sábado, 17 de outubro de 2009

Sofia

Lá fora ainda era possível ver o sol se pondo atrás das montanhas, a luz que atravessava a janela junto com o vento que movia as cortinas dava ao ambiente da sala pouco mobilhada uma cor alaranjada. Num canto, ao lado do sofá, sentado em posição fetal, estava eu. Tinha nas mãos, pendendo entre meus joelhos, a arma que trazia as marcas do pouco uso. Vertiam lágrimas do meu rosto, frutos do que eu acabara de fazer. Lágrimas essas que não eram de culpa, nem de arrependimento, mas alívio, alívio que minha mente necessitava e meu coração implorava. Alívio por ter mostrado a liberdade ao meu peito.


Minha esposa e eu tínhamos um tapete que era seu favorito. Branco, bastante macio graças aos fios de lã que o compunham. Eu sempre lhe dizia que lembrava a pele de um bicho morto qualquer, ela já o comparava ao cachorro que não nos era permitido ter. Políticas do condomínio. Sobre esse tapete à minha frente ela jazia deitada ofegante, e do lado direito da boca vertia um fio de sangue, sangue que derramava abundantemente de seu corpo tingindo o tapete. Seus olhos bastante abertos e rígidos, apontados para mim, pediam que lhe dissesse os motivos ao mesmo tempo em que imploravam ajuda. Queriam reter a vida com todas as forças, mas já não era possível.

Dois tiros. Não vi onde acertei, sei simplesmente que o ferimento estava entre o peito e a barriga. Foi bastante fácil apertar o gatinho. Entrei em casa, soltei a mochila sobre o sofá, abri-a, tirei a arma. Esperei até que ela viesse me cumprimentar, apontei a arma em sua direção, fechei bem os olhos e atirei. Assim, simplesmente. Depois me dei conta do que tinha feito, do que isso significava, de como seria minha vida daquele momento em diante. Enfim, Sofia não era mais necessária.

“O pensamento é alguma coisa viva” já dizia certo louco, “se você não tiver cuidado ela te tira desse mundo, e reinventa outro para você”, completava. Entendo o que isso significa mais que qualquer ser humano, mais que o próprio louco que disse essas palavras. Sofia foi tudo pra mim desde que a conheci quando ainda era um imaturo adolescente movido pelas paixões possíveis de experimentar, enquanto ela se mostrava altiva e adulta ainda que fossemos da mesma idade. Casamo-nos, quando completamos quinze anos de amizade, exatamente na data na em que fomos apresentados pela vida um ao outro. Ela, linda e atraente como sempre, e eu bobo e tímido, porém seguro fomos felizes durante os cinco primeiros anos de casamento. Mas Sofia já não me trazia o prazer de antes, nossas longas conversas e noites intermináveis de amor já não era o suficiente para saciar-me. Separamo-nos diversas vezes na inútil tentativa de trazer a saudade ao nosso encontro, mas era tarde. Nosso amor morreu, seus olhos me diziam.

Isso era impossível. O amor não morre, não enquanto vivem aqueles que amam. Era inconcebível em minha mente de ali há algum tempo estar definitivamente divorciado de Sofia. Não permitiria tal afronta ao que eu julgava sagrado. Como ter ciência de que aquela com quem dividi o leito matrimonial agora já não era minha esposa, que seria de outro homem cujas caricias lhe agradariam e não se lembraria mais de mim? Como conceber que não éramos mais um antes nós seriamos apenas dois, e nunca mais nos veríamos com o mesmo sentimento? Meu coração já não era seu, confesso, mas não podia imaginar o futuro existindo nele um casal onde eu a não era par de Sofia, minha outra metade. E, mais inconcebível ainda era eu ter com outra pessoa vivendo ainda com aquela a quem jurei amor até a morte. Portando somente a morte de Sofia traria liberdade ao meu espírito e ao meu coração.

Foi Cristina quem me roubou de minha esposa. Aqueles olhos cor de avelã encarceraram meus pensamentos, e fizeram nascer a coragem que me faltava. Duas noites, e ela me obrigou a escolher, a dizer que era ela quem eu queria. Pôs-me contra a parede, e me deu as alternativas: continuar casado com Sofia e nunca mais nos vermos ou me divorciar e recomeçar a vida com ela ao meu lado. Sabia que era de verdade, que não poderia ficar com ambas, Cristina era por demais geniosa e inflexível. Mas como separar-me daquela a quem jurei amor até a morte? Sofia tinha que morrer.

Lá fora já ouço as sirenes, sei que são da polícia. Não vou resistir, reconheço que o que fiz é, perante a lei, um crime e devo cumprir minha pena, mas diante de mim mesmo, chamo meu ato de busca por liberdade, por alívio, por uma nova escolha. Estão à porta, num chute forte entram dois, armas apontadas para mim. Largo a arma no chão, um deles chuta-a para longe, me obriga a deitar de bruços com as mãos na cabeça. Algemas me adornam os pulsos, ainda posso ver Sofia lutando pela vida. Entram alguns homens de brando com uma grande tábua. Sou levantado à força e conduzido até fora do prédio onde alguns observam os acontecimentos, entre eles um olhar chama minha atenção, era Cristina. Sorrio para ela, que se vira e sai me esperará de certo. Da viatura, muito de longe ainda vejo entrar na ambulância Sofia. Morrerá sem dúvida.





Um comentário:

  1. Muito bom!!! Digno de um livro de romance!!! Adorei! Vc tem muito talento! Parabéns!

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ke ki tu axô...