É sempre bom ir pra casa depois de um dia de trabalho e, quando se é professor em três escolas de ensino médio, o cansaço é quase seu estado físico normal. Entra no carro e liga o som, ajusta os espelhos e sai em direção à Rodovia Presidente Dutra que de usada tão freqüentemente desde os dias de faculdade, ficou somente “Dutra” para ele e tantos outros. A sensação de dirigir a noite é fantástica, principalmente quando à frente só é possível ver a estrada, até por que a partir dos 80 km/h nos é permitido notar três postes de luz por segundo e a linha reta que se anuncia como destino inegociável. É extremamente relaxante. Não é você quem se move, é o mundo que passa velozmente por sua vista e te dá um rapidíssimo até logo pelo retrovisor. No carona repousa um bouquet de rosas que ele sabe serem as preferidas dela, uma garrafa de um vinho mais ou menos, também mais ou menos para ele e um ursinho de pelúcia para a princesinha recém chegada.
O celular toca. Benditas invenções foram o viva-voz e o atendimento automático. É só esperar uns segundos e:
-Oi, amor! Ouve a voz da esposa sem tirar a mão do volante.
-Olá! Em uns dez minutos chego. Ta tudo bem?
-“Ta”! Bom, daqui a pouco agente se fala, então. Beijos!
Nunca entendeu por que ligar só pra dar um “oi, amor”, mas já está habituando, fica sem graça o dia quando não tem essa atenção que ele preza tanto. A próxima saída à direita já é indicada pela seta. Uma passada na Pizzaria Pôr-do-sol do senhor Daniel, uma portuguesa na caixa para combinar com o vinho (que gosto!) e retoma seu caminho.
Enfim em casa, seu lugar! O lugar com o qual sonhara por anos ter nas mãos a chaves da porta e, abrindo-a contemplar o interior e saber que aquilo é fruto de seu trabalho. A sensação de realização é indescritível. Modesta, suburbana, em reforma, mas é sua e, fora a vontade divina, nada poderia tirá-lo dali.
Um beijo de boas vindas da esposa, a entrega das rosas, sorrisos de ambos. Sua rainha era a mesma dos tempos de namoro e longo noivado, o mesmo sorriso nos lábio, o mesmo perfume, o mesmo olhar. A gravidez deixara-lhe o manequim alguns números maior, mas nunca isso seria suficiente para que a olhasse com menos amor nos olhos, mesmo por que esses quilinhos a deixara mais atraente, mais... deixe para lá. Rumam em direção ao quarto do bebê. No berço, dormindo com chupeta cor-de-rosa na boca e um lassinho combinado na cabeça, fartas madeixas castanho-claro e, em posição fetal como se ainda não tivesse acostumada com a vida aqui fora, dormia despreocupada. Deposita a pelúcia no alto do berço compondo inconscientemente a figura de um vigia para a criança.
Na cozinha, a combinação inusitada de pizza portuguesa e vinho barato os espera. Uma fatia para cada, uma taça para cada. Comem os pedaços temperando-o com um resumo do dia de ambos. Ela também, ligada ao magistério, comenta das dificuldades de alguns alunos e cogita reprovar-los, infelizmente, e se queixa de não ter muito tempo para ficar com o bebê. Ele se preocupa com a reforma que não acaba nunca e com a proposta de lecionar em um seminário teológico protestante, sonho antigo que motivou graduar-se em português-grego e estar cursando mestrado nessa língua. Fim do vinho, fim da pizza, início da lavagem da louça. Dois pratos, duas taças, quatro mãos, uma pia. Um banho agora era o mínimo que mereciam depois de um dia cheio.
Buscam as toalhas e os roupões, entram no banheiro, abrem o chuveiro, o bebê chora. Ela sai, ele fica. A água é morna, relaxante, revigorante, três adjetivos que ele precisava naquele momento. O banho demora menos que o habitual e ele sai secando a cabeça na direção do quarto da filha. Lá a mãe embala aquele pedaço rosado de gente enquanto a alimenta do peito, ele, com a toalha nos ombros, beija-a nos lábios e recebe a criança nos braços, deposita-a no berço e arruma o urso enquanto a esposa vai terminar o que o alarme de fome interrompeu.
A tevê ligada em um canal qualquer não parece perturbar o sono que o arrebatou a consciência. Sobre o criado-mudo, os óculos que repousavam em cima da Bíblia Sagrada que ele sempre lê antes de dormir. A esposa entra, os cabelos secos deixam dúvidas acerca do banho (outra coisa que ele nunca entendera era o fato dela tomar banho e nem sempre lavar os cabelos – coisas de mulher – explicava), o pijama largo escondia as suas curvas tão bem delineadas, mas não seus seios fartos. Desliga a tevê, apaga o abajur, deita-se e se acomoda entre os braços do amado que não desperta, ambos dormem. Amanhã será sábado.
O despertador avisa que acabou o tempo para dormir, os sonhos são interrompidos e os raios do sol já entram pela janela. Relutante, deixo minha cama com a mochila vermelho e preta nos ombros. Tomo um copo de café depois do banho matinal, apanho carteira e o celular, vai tudo para dentro da mochila junto com as gramáticas. Lá fora o mundo me espera por que não são as dificuldades do presente que me motivam, mas sim os sonhos para o futuro
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ke ki tu axô...